Em mais de 300 anos de história da cidade brasileira de Curitiba, nenhum vereador havia sido cassado até 2022, quando um jovem político negro promissor foi forçado a deixar o cargo.
Renato Freitas foi acusado de “quebra de decoro parlamentar” por liderar um protesto antirracismo que terminou dentro de uma igreja católica — ironicamente chamada Igreja dos Homens Pretos e construída por pessoas escravizadas no século 18.
A cassação acabou sendo anulada pelo Supremo Tribunal Federal, mas esteve longe de ser o último caso aberto contra Freitas, de 41 anos, uma estrela em ascensão no Partido dos Trabalhadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Agora deputado estadual, ele enfrenta outros três processos de cassação, nos quais seus colegas — em sua maioria brancos e conservadores — decidirão se irão removê-lo novamente do cargo.
Ele também pode sofrer uma sanção disciplinar por supostamente organizar um protesto de professores, o que o impediria de falar durante as sessões legislativas por um mês.
Ativistas, analistas e historiadores veem os casos contra Freitas como evidência de como uma cidade que se orgulha de se autodenominar a “capital europeia do Brasil” é incapaz de lidar com um político negro desafiador.
“Eu chego pesado — e isso irritou muita gente”, disse Freitas em uma tarde de julho, usando um cabelo afro volumoso, camiseta de Malcolm X, bermuda e tênis, dando tragadas ocasionais de maconha durante uma entrevista embalada por uma playlist de rap tocando em uma caixa de som que ele mesmo levou.
Foi ali perto que, durante sua primeira disputa eleitoral em 2016, Freitas foi preso sob acusação de perturbação do sossego por ouvir rap “alto demais” no carro e por supostamente desrespeitar o policial que o abordou. Ele foi espancado e deixado nu em um corredor da delegacia antes de ser liberado.
Freitas afirma ter sido detido ou preso 16 vezes — e se tornou uma das principais vozes contra a violência policial em um estado onde, sob um governador de extrema direita, as mortes causadas pela polícia dispararam.
Ele desafia praticamente todas as regras do que um político típico costuma parecer ou soar no Brasil: só usa terno e gravata quando estritamente necessário, fala em gírias e rimas — muitas vezes citando ou parafraseando letras de rap — e tem uma história de vida nada convencional.
“Eu fui uma criança criminosa”, disse Freitas, que lembra de furtar sorvetes e doces. “Eu não tinha acesso a essas coisas, então eu roubava.”
Criado pela mãe, uma empregada doméstica, em um bairro pobre próximo à prisão onde seu pai estava encarcerado, em Piraquara, a 21 km de Curitiba, Freitas teve uma trajetória escolar irregular. Usou o salário que ganhava ensacando compras para pagar um cursinho preparatório e ingressou na faculdade de Direito, obtendo depois um título de mestre.
Ele se juntou ao PT de Lula e concorreu duas vezes antes de ser eleito em 2020, algo nada trivial em uma cidade que se tornou um reduto conservador. Curitiba, capital do Paraná, foi sede do juiz e do principal procurador da Operação Lava Jato — a gigantesca investigação anticorrupção que levou à prisão dezenas de políticos, servidores públicos e empresários entre 2014 e 2021. Foi também ali que Lula ficou preso por 580 dias.
O episódio da igreja em 2022 ocorreu poucos meses antes da eleição presidencial que Lula viria a vencer. O então presidente Jair Bolsonaro condenou Freitas por “invadir” e “desrespeitar a Casa de Deus”. E, apesar de pertencer ao mesmo partido de Freitas, Lula disse que ele havia “cometido um erro” e “precisava pedir desculpas”.
O vereador foi cassado por 25 votos a 7 por seus colegas.
Apesar de ter recuperado seus direitos políticos, Freitas ainda guarda ressentimento pelo comentário de Lula. “Antes de dizer que eu errei, ele poderia ter conversado comigo para saber o que aconteceu”, disse, acrescentando que ainda pretende fazer campanha para Lula nas eleições do próximo ano.
Entre os processos atuais contra ele, Freitas é novamente acusado de “quebra de decoro”, desta vez por liderar um protesto dentro de um supermercado em resposta ao espancamento fatal de um jovem de 22 anos que supostamente havia roubado uma barra de chocolate.
“Ele faz questão de não ser um político tradicional”, disse Adriano Codato, professor de ciência política da Universidade Federal do Paraná, destacando que Freitas não costuma fazer acordos com políticos de oposição. “No entanto, essa postura antipolítica pode acabar sendo menos eficaz quando se trata de garantir melhorias para seus eleitores, como escolas ou ruas pavimentadas.”
Para o cientista político Mateus de Albuquerque, a “resistência” do establishment político a Freitas também tem raízes raciais: “Curitiba é uma cidade que quer se apresentar como ‘europeia’ e sem pessoas negras, mas Freitas expõe o fato de que elas estão aqui e de que a polícia as agride e mata.”
Segundo a historiadora Noemi Santos da Silva, a noção de Curitiba como a “capital europeia do Brasil” surgiu nos anos 1950, baseada na crença de que seu clima mais frio, seus serviços públicos eficientes e sua grande população de descendência europeia a tornavam uma cidade mais “civilizada”.
As atrações turísticas da cidade celebram sua história de imigração italiana e alemã, mas embora quase um quarto dos moradores seja afro-brasileiro, apenas uma praça homenageia a população negra — e fica longe das principais rotas turísticas.
“Em uma cidade que empurrou os negros para as periferias, Freitas ousou ocupar um espaço que nunca foi pensado para alguém como ele”, disse ela.
Freitas ainda não sabe se vai buscar cargos mais altos, talvez como prefeito ou governador, mas afirma: “É mais fácil se tornar presidente do Brasil do que ser prefeito de Curitiba, porque o país não é tão hostil a alguém como eu quanto esta cidade é.”